O que é a espiritualidade feminina?
Círculo de pedra de Stonehenge. Foto: Andrew Testa/The New York
Há uns 15 anos (provavelmente mais, o tempo da memória nem sempre acompanha os roteiros celestes), um amigo deu-me um livro: The Crone, woman of age, wisdom and power (ou A anciã, uma mulher de idade, sabedoria e poder), da escritora americana Bárbara Walker. Por coincidência ou por artes outras, este livro já chegou às minhas mãos velho, porque, na verdade, foi achado dentro de uma caixa, num desses dias em que resolvemos fazer uma limpeza de alto a baixo na casa, e arrumar as gavetas da alma.
E o meu amigo resolveu dar-me, nem eu nem ele sabemos bem a razão, mas talvez porque as mulheres da minha idade, ainda que nem sempre o queiram admitir, têm uma alminha feminista guardada nalguma gaveta... E estava na hora deste meu Alter ego, afinal, se revelar e... cair na vida.
Não era um livro feminista, pelo contrário. Naquela altura, para uma boa parte do mundo, os tempos do feminismo pareciam acabados e as próprias feministas estavam reduzidas a meras caricaturas de si mesmas. O que pode parecer uma tremenda injustiça histórica, considerando que ainda persistem em países da África, por exemplo, costumes hediondos como a extirpação do clitóris das mulheres. Mas, talvez, não tenha sido injustiça. Talvez, apenas, porque hoje ninguém precise mais de ser feminista para lutar contra a desigualdade, qualquer que seja a forma que ela tome.
Enfim, o livro de Bárbara Walker era sobre espiritualidade feminina e por aquela porta entraram velhas sábias e mães terríveis; passaram Ouroboros (*) engolindo a própria cauda e Grandes Deusas de onde tudo veio e para onde todos os seres do universo voltarão; desfilaram deusas terríveis e deusas deslumbrantes, Kali e Shakti, Inana e Íris.
E longe de serem representações frias, ressequidas habitantes das páginas dos livros, elas, inexplicavelmente, já viviam em mim, quentes e pulsantes, aspectos fascinantes e inexplorados da minha alma feminina… Essas forças arquetípicas tinham o poder de transformar o mundo numa epifania feminina e fazer a própria Terra, virar a Grande Gaia, a brilhar, inchada de orgulho e eu era parte dela…
Cresci embalada por histórias da tradição judaico-cristã, onde as mulheres quase nunca ocupam os papéis principais. Mesmo quando esse papel era delas de direito, como é o caso, afinal, com licença, da Mãe de Deus, uma verdadeira Theotokos (**), os homens apareciam para roubar o protagonismo. (Até isso vem mudando aos poucos e teólogas como Adriana Valério e Elisabeth Fiorenza estão relendo a história sagrada, em busca dos rostos femininos que ficaram na sombra).
Depois da Velha, vieram as Mulheres que Correm com Lobos. Então, de repente, esbarro com todas aquelas imagens femininas vindo, surgindo pelo caminho, iluminando de significados tantas zonas escuras do meu ser feminino…
Desde o meu primeiro encontro com a Velha e as suas irmãs, tenho lido muito, muito, sobre espiritualidade feminina. De certa forma, o livro amarelado ganhou contornos novos, mais amplos. Mas acho que a minha dívida com a Velha Sábia não vai ser paga nunca.
E embrulhada no círculo, veio a pergunta: Como a nossa vida de mulher teria sido diferente se “existisse um lugar para nós, um lugar de mulheres, um lugar onde outras mulheres, mais velhas, talvez, estivessem esperando para ajudar-nos a fixar raízes na terra sagrada do feminino. Um lugar onde houvesse um entendimento profundo próprio de nós, mulheres, e onde pudéssemos encontrar alimento em todas as estações da vida. Um lugar de mulheres para nos ajudar a ver o nosso próprio rosto e a avaliar a nossa própria estatura. Para ajudar a prepararmo-nos e para sabermos quando estivéssemos prontas …Como a nossa vida seria diferente?”
Então, a Velha Sábia tomou-me pela mão há muitos anos e conduziu-me por todas essas estradas vicinais… E, engraçado, de quando em vez, quando estou devorada de perplexidade, penso nela. E marcamos um encontro à sombra de uma árvore. Ela está semprel lá, envolvida por um xaile, cabelos longos presos num coque folgado, sorriso de quem, embora já tenha visto tudo, ainda é capaz de maravilhar-se. É o melhor colo do mundo…
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Mandy Martins-Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia.
Imagem : Web
(*)Ouroboros é um conceito representado pelo símbolo de uma serpente, ou um dragão, que morde a própria cauda. A palavra, de origem grega, designa "aquele que devora a própria cauda". A sua representação simboliza a eternidade. Está relacionado com a alquimia, que é por vezes representado como dois animais míticos, mordendo o rabo um do outro.
(**)Theotokos é o título grego de Maria, usado especialmente na Igreja Ortodoxa e Igrejas Orientais Católicas. Sua tradução literal para o português inclui "portadora de Deus". Traduções menos literais incluem Mãe de Deus. Católicos, anglicanos, e algumas denominações protestantes usam com mais frequência o título de "Mãe de Deus" do que "Teótoco".